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As dificuldades interpretativas da lei do Arrendamento

I - As renovações automáticas nos contratos de arrendamento

A questão apesar de não ser nova, mantém-se atual, dada a dúvida interpretativa que originou na doutrina e em virtude da jurisprudência recente e contraditória que se tem pronunciado sobre o tema.

Uma das principais questões que surgiu no seguimento da entrada em vigor da Lei n.º 13/2019, de 12 de fevereiro, passa por perceber se, com a nova redação passam a impor-se períodos mínimos de renovação, de 3 e 5 anos, para os contratos de arrendamento para fins habitacionais e não habitacionais, respetivamente, ou se, pelo contrário, a sua fixação se mantém na livre disponibilidade das partes.

Esta dúvida sustenta-se na nova redação em que se aditou o seguinte: “Salvo estipulação em contrário, o contrato celebrado com prazo certo renova-se automaticamente no seu termo e por períodos sucessivos de igual duração ou de três anos se esta for inferior, sem prejuízo do disposto no número seguinte”.

De facto, e estando numa área (a dos contratos) em que vigora, por excelência, o princípio da autonomia privada é incontestável que apenas por questões de razão maior poderá tal princípio ser circunscrito e as partes verem os seus direitos limitados por normas imperativas.

No entanto, o novo diploma de 2019 parece derrogar a pedra basilar das relações entre privados prevendo medidas destinadas a corrigir situações de desequilíbrio entre arrendatários e senhorios, a reforçar a segurança e a estabilidade do arrendamento urbano e a proteger arrendatários em situação de especial fragilidade.

Sendo que o núcleo duro da divergência de interpretação jurídica se prende com a expressão inicial da norma, “salvo estipulação em contrário”.

A redação da norma não é, por si, suficiente para tomar posição nessa questão, porquanto, na sua parte inicial, ressalva a estipulação em contrário, sem que possa afirmar-se que o faz apenas por referência ao primeiro segmento, ou seja, para estipular apenas a faculdade de as partes afastarem a renovação automática, ou se também abrange o segundo segmento da norma, possibilitando que estas convencionem períodos de renovação de duração inferior ao limite mínimo de três anos aí previsto.

II – Da imperatividade/supletividade do prazo de renovação

Assim, encontramos decisões distintas pelos diversos tribunais superiores quanto à imperatividade ou supletividade do período de duração mínima das renovações automáticas.

No sentido que a Lei n.º 13/2019 fixa um regime imperativo vejam-se os acórdãos do Tribunal da Relação de Guimarães (processos n.º 795/20.5T8VNF.G1, de 8-04-2021, e 1423/20.4T8GMR.G1, de 2-11-2021). Encontrando tal entendimento corroboração acérrima por parte da Juíza Conselheira do Supremo Tribunal, Dra. Maria Olinda Garcia1, em artigo publicado na Revista Julgar Online.

Já em posição diametralmente oposta, encontram-se os acórdãos do Tribunal da Relação de Lisboa, processos n.º 8851/21.6T8LRS.L1-6 de 17-03-2022 e n.º 7855/20.0T8LRS.L1-7, de 24-05-2022 e o entendimento de Jéssica Rodrigues Ferreira2: “Parece-nos que o legislador pretendeu que as partes fossem livres não apenas de afastar a renovação automática do contrato, mas também que fossem livres de, pretendendo que o contrato se renovasse automaticamente no seu termo, regular os termos em que essa mesma renovação ocorrerá, podendo estipular prazos diferentes - e menores - dos supletivamente fixados pela lei, (…)”. Ou ainda Edgar Alexandre Martins Valente3 que entende que “...as partes, à semelhança do que já sucedia na redação anterior da norma, podem definir regras distintas, designadamente estabelecendo a não renovação do contrato, ou a sua renovação por períodos diferentes dos referidos, atenta a natureza supletiva da norma em questão (...)”4.

III - Conclusões

Apesar das divergências, tendemos a considerar, em conformidade com a doutrina supra citada, que a renovação por período igual ao estipulado para a duração inicial do contrato não coloca em causa os princípios que tiveram por base a alteração legislativa de 2019, ou seja, fixando a própria lei a duração mínima inicial de um contrato de arrendamento pelo período de um ano, não se poderá sustentar que a renovação desse mesmo contrato por apenas mais um ano conduzirá a situações de desequilíbrio entre arrendatários e senhorios, que não reforce a segurança e a estabilidade do arrendamento urbano ou que não proteja os arrendatários em situação de especial fragilidade.

Não obstante, até que seja proferido acórdão uniformizador de jurisprudência por parte do Supremo Tribunal de Justiça permanecerão as dúvidas quanto à imperatividade ou supletividade da norma, permitindo a coexistência de decisões contraditórias o que, como bem se vislumbra, ao invés de asseverar pelos princípios fundamento da nova lei, apenas admitirá repetidas violações ao princípio do Estado de Direito, concretizado no princípio da segurança jurídica e da proteção da confiança dos cidadãos.

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1 in Alterações em matéria de Arrendamento Urbano introduzidas pela Lei n.º 12/2019 de 1 de fevereiro e pela Lei n.º 13/2019 de 12 de fevereiro, Revista Julgar Online, março 2019, pág. 11.

2 in Análise das principais alterações introduzidas pela Lei n.º 13/2019, de 12 de fevereiro, aos regimes da denúncia e oposição à renovação dos contratos de arrendamento urbano para fins não habitacionais, Revista Eletrónica de Direito, fevereiro 2020, página 82, in https://cije.up.pt/pt/red/edicoes-anteriores/2020-nordm-1/analise-das-principais-alteracoes-introduzidas-pela-lei-nordm-132019-de-12-de-fevereiro-aos-regimes-da-denuncia-e-oposicao-a-renovacao-dos-contratos-de-arrendamento-urbano-para-fins-nao-habitacionais/

3 in Arrendamento Urbano - Comentários às Alterações Legislativas introduzidas ao regime vigente - Almedina - 2019, página 31, em anotação ao artigo 1096. ° do Código Civil

4 No sentido que o prazo da renovação admite estipulação em contrário, veja-se ainda ISABEL ROCHA, PAULO ESTIMA, Novo Regime do Arrendamento Urbano – Notas práticas e Jurisprudência, 5.ª edição, Porto, Porto Editora, 2019, p. 286 e JORGE PINTO FURTADO, Comentário ao Regime do Arrendamento Urbano, Coimbra, Almedina, 2019, p. 579, onde se lê, a jeito de conclusão, que se pode “validamente estabelecer, ao celebrar-se um contrato, que este terá, necessariamente, uma duração de três anos, prorrogando-se, no seu termo, por sucessivas renovações de dois, ou de um ano, quatro ou cinco, como enfim se pretender.”