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Contratos de trabalho no âmbito das plataformas digitais

No passado dia 5 de abril foi proferida sentença do Juízo do Trabalho do Tribunal Judicial de Portimão, à qual a comunicação social teve acesso, e que vem negar a existência de uma relação laboral entre 27 estafetas e a plataforma digital Glovo, rejeitando o reconhecimento de contrato de trabalho entre as partes.

O Tribunal considerou provado um “conjunto de elementos” que “apontam no sentido da inexistência de uma relação com caráter de subordinação” entre os estafetas e a empresa, não tendo considerado provado que haja uma fixação de preço prestado pela empresa, argumentando que os estafetas podem recusar a realização do serviço inclusivamente por não concordarem com o preço, o qual o Tribunal entende que é apresentado como uma proposta e não como uma imposição, havendo, ainda, a possibilidade de o estafeta alterar o preço/custo na plataforma para um valor que lhe seja mais benéfico.

O Tribunal, também, entendeu que a plataforma não impõe aos estafetas regras para a forma como prestam o serviço, não controla a prestação da atividade, não impõe horários de trabalho e permite que os estafetas trabalhem para outras plataformas, considerando não provado que os instrumentos de trabalho, como telemóveis, mochilas isotérmicas e veículos, pertençam à empresa.

Recorda-se que, no início de fevereiro deste ano, o Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, em sentido contrário, reconheceu, pela primeira vez, a existência de um contrato de trabalho entre um estafeta e a Uber Eats Portugal, plataforma de entrega de refeições ao domicílio concorrente da Glovo, após o Ministério Público ter interposto uma ação com esse objetivo e na sequência de uma inspeção da Autoridade para as Condições de Trabalho (ACT).

O Tribunal Judicial de Lisboa fez para aquele caso uma interpretação em quase tudo divergente do que agora foi decidido no processo relativo à Glovo, considerando haver um controlo da atividade do prestador pela plataforma, restrições à recusa e aceitação de serviços e fixação da retribuição do estafeta, concluindo a final que a Uber Eats Portugal “não é uma mera intermediária na contratação de serviços entre estabelecimentos comerciais e estafetas”.1

Ora, a Lei n.º 13/2023, de 3 de abril, que entrou em vigor no dia 1 de maio de 2023, veio introduzir o novo artigo 12.º-A ao Código do Trabalho, estabelecendo as regras para a presunção de contrato de trabalho no âmbito de plataforma digital, o que iniciou a divergência que se adensa nas várias decisões dos Tribunais Judiciais que têm vindo a ser proferidas.

Segundo o citado artigo, presume-se a existência de contrato de trabalho quando, na relação entre o prestador de atividade e a plataforma digital, quando se verifiquem algumas das seguintes características:

a) A plataforma digital fixa a retribuição para o trabalho efetuado na plataforma ou estabelece limites máximos e mínimos para aquela;

b) A plataforma digital exerce o poder de direção e determina regras específicas, nomeadamente quanto à forma de apresentação do prestador de atividade, à sua conduta perante o utilizador do serviço ou à prestação da atividade;

c) A plataforma digital controla e supervisiona a prestação da atividade, incluindo em tempo real, ou verifica a qualidade da atividade prestada, nomeadamente através de meios eletrónicos ou de gestão algorítmica;

d) A plataforma digital restringe a autonomia do prestador de atividade quanto à organização do trabalho, especialmente quanto à escolha do horário de trabalho ou dos períodos de ausência, à possibilidade de aceitar ou recusar tarefas, à utilização de subcontratados ou substitutos, através da aplicação de sanções, à escolha dos clientes ou de prestar atividade a terceiros via plataforma;

e) A plataforma digital exerce poderes laborais sobre o prestador de atividade, nomeadamente o poder disciplinar, incluindo a exclusão de futuras atividades na plataforma através de desativação da conta;

f) Os equipamentos e instrumentos de trabalho utilizados pertencem à plataforma digital ou são por esta explorados através de contrato de locação.

Nos casos em que se considere a existência de contrato de trabalho, aplicam-se as normas previstas no Código do Trabalho que sejam compatíveis com a natureza da atividade desempenhada, nomeadamente o disposto em matéria de acidentes de trabalho, cessação do contrato, proibição do despedimento sem justa causa, remuneração mínima, férias, limites do período normal de trabalho, igualdade e não discriminação.

Contudo, esta é uma presunção ilidível, o que significa que a plataforma digital pode, nomeadamente em sede judicial, afastar essa presunção, fazendo prova de que o prestador de atividade trabalha com efetiva autonomia, sem estar sujeito ao controlo, poder de direção e poder disciplinar de quem o contrata, aplicando-se, por sua vez, e nesses casos, o regime da prestação de serviços.

Esta aplicação divergente da norma em causa poderá implicar que, numa mesma situação laboral, possam coexistir pessoas com enquadramentos legais diferentes, o que resultará num tratamento diferenciado na atribuição de benefícios e proteção legal em matéria laboral, tendo o então trabalhador direito ao recebimento de créditos laborais, tais como subsídio de ferias e Natal, compensação por prestação de trabalho suplementar e compensação por cessação do contrato de trabalho.

Até que a Jurisprudência se uniformize na interpretação e aplicação das normas legais atendíveis nesta matéria, irão subsistir diferentes realidades.

1 Sem prejuízo, e à data do presente artigo, foi a sentença aludida objeto de anulação por falta de citação da Uber Eats Portugal.